Ao
contrário do que se pensa, no mundo das classificações de livros, filmes e
jogos, os gêneros e estilos foram criados não para estabelecer uma
obrigatoriedade de características, mas para entendermos o que há de
predominante em uma história ou estética.
Vamos
pensar em exemplos. No cinema, um filme como “Invocação do Mal” é classificado
como “de terror”, mas isso não impede que haja momentos cômicos em que
personagens fazem piadas, também não significa que não tenha partes dramáticas
no filme, ou românticas. A linha condutora da história é o terror, a
predominância na ideia criativa é o terror, mas outros elementos estão
presentes.

Nos
videogames, um jogo como “Shadow of the Tomb Raider” é classificado como um
jogo de ação/aventura, no entanto você encontra, em certas passagens, alguns
elementos do terror e do horror, mas isso não faz desse jogo um jogo de terror,
assim, é apenas um elemento que está lá em alguns momentos, a predominância é
do estilo que identificamos como ação e aventura.
Na
escola aprendemos que Machado de Assis era o principal autor do Realismo, mas
isso não significa que você não vá encontrar em seus textos características de
outras escolas literárias, como do Romantismo, apenas entendemos que o Realismo
é a principal corrente estética e ideológica presente nas obras apontadas como
as mais significativas do autor. Ser a principal não significa ser a única.
Usei
todos esses exemplos apenas para apresentar uma ideia de que a classificação
dos gêneros e estilos tem, no geral, duas funções: uma de cunho mercadológico,
pois a classificação geralmente cria nichos de consumo para “fãs do terror”,
“fãs de jogos de luta” e etc; e outra que tem a intenção de apresentar os
principais elementos de uma obra, afinal, quando falamos em “ação”, “terror”,
“drama” ou “comédia”, a gente puxa do nosso cérebro um conjunto de
características que já temos na nossa bagagem cultural para sabermos o que
esperar minimamente daquilo que a gente vai ler, jogar ou assistir. Ou seja, a
gente se prepara para o que está por vir, e isso faz parte da experiência do
consumo.
Toda
essa conversa me parece interessante de retomarmos antes de falarmos das
diferenças entre os jogos de terror/horror e os jogos que chamamos de survival
horror. Apesar de estarem entrelaçados e serem tratados muitas vezes como
sinônimos, são um pouco diferentes. Na realidade, a ideia que vou apresentar
aqui será para entendermos o survival horror como um subgênero dos jogos de
terror/horror, assim como dos de ação/aventura. Com “sub” não faço aqui um
julgamento de valor, como se fosse algo menor, mas sim como uma noção de
derivação, entendendo que o survival horror deriva dos jogos de terror/horror e
de ação/aventura.
Em
outras palavras, todo jogo de survival horror é um jogo de terror/horror, mas
nem todo jogo de terror/horror é um jogo de survival horror.

Vamos
começar com a definição de survival horror dada pelos próprios criadores dos
jogos. Apesar de considerar essas classificações insuficientes, elas nos dão
algumas pistas. Afinal, os desenvolvedores estão mais preocupados em criar do
que em classificar, isso é trabalho da publicidade e do público.
Durante
o lançamento de “The Evil Within”, Shinji Mikami, cabeça que também está por
trás da criação de Dino Crisis e Resident Evil, deu uma entrevista para a Wired
na qual falou um pouco sobre as diferenças entre os jogos de terror e os jogos
de survival horror. Você pode ler o original aqui.
Ele
disse o seguinte: “the difference between pure horror and survival horror is
that in the latter you can defeat the monsters and feel good about it. You have
to have that sense of being able to defeat a monster, even if it's tough. I've
made Evil Within to be a very difficult game but when you finish the game, you
will feel a sense of achievement.”
Percebam
que o principal elemento que Mikami escolhe para falar da diferença entre um
jogo de terror/horror e um survival horror é a dificuldade, a ideia é a de que
o survival horror é um jogo feito propositalmente para ser mais difícil, com
monstros e passagens mais desafiadoras. Isso geraria uma grande satisfação nos
jogadores que passassem por todas as dificuldades e concluíssem o game. Na
mesma entrevista, Mikami diz que um jogo como “Silent Hill” não seria um
survival horror, seria apenas um jogo de terror/horror.

Um
dos desenvolvedores de “Resident Evil: Revelations”, Kazuhisa Inoue, também já
tentou estabelecer uma diferença entre os dois tipos de game, mas, na minha
opinião, não foi muito feliz no desenvolvimento da sua ideia. Vocês podem ver a
entrevista na qual ele faz essa classificação logo abaixo, num vídeo
promocional do lançamento do game anteriormente citado.
Para
Kazuhia, nos jogos de terror/horror o jogador teria uma experiência mais
passiva, pois o foco do jogo seria basicamente fazer o jogador sentir medo, enquanto
no survival horror a experiência seria mais ativa, pois além de sentir medo o
jogador seria levado a se envolver mais com a história de modo a trabalhar mais
a mente para pensar em soluções para sair da situação pavorosa e misteriosa que
está acontecendo. Acredito que essa classificação seja um tanto problemática,
pois um jogo de terror/horror também pode ser um jogo que exija engajamento por
parte do jogador para sair das situações. A questão da ação e passividade do
jogador nos games está mais relacionada ao estilo que os desenvolvedores
escolhem para contar uma história do que com o gênero do game em si.
Além disso, a ideia de passividade e atividade
em um jogo pode ser muito relativa. Games como “Until Dawn”, “Man of Medan” e
“Little Hope”, por exemplo, que conhecemos como “dramas interativos”, podem ser
considerados como uma experiência de jogo mais passiva dentro do terror/horror
simplesmente por precisamos apenas escolher respostas e outras ações dos
personagens, e não temos que administrar inventários, armamentos e enfrentar um
boss monstruoso cheio de cabeças e olhos? Acredito que não, por isso, o item
“passividade”, para mim, tende a ser insuficiente para entender o survival
horror como algo diferente do terror/horror.

Kazuhia acerta no engajamento do survival, mas erra na passividade que vê no horror. Creio que Shinji Mikami estava próximo de uma
resposta mais adequada: a dificuldade e a sensação de vitória do desafio
enfrentado depois de finalizado. Apesar de um game de terror/horror também
poder ser difícil, acredito que a dificuldade que faz do survival horror ser
algo que chamamos de realmente de “SURVIVAL HORROR” é uma dificuldade bem
específica, com traços marcantes.
Para
mim, não basta os inimigos serem mais resistentes para chamarmos um jogo de
terror/horror de survival horror. Quando leio essa classificação, alguns
elementos me vem à cabeça e me fazem esperar por eles durante o gameplay. E
para explicar essa ideia é impossível não usar o primeiro game da franquia de
“Resident Evil” como exemplo, pois apesar de não ser o game que inaugurou o formato
do survival horror, foi ele que o popularizou. Está tudo ali. Quando penso em
survival horror penso sim, em um jogo de terror/horror, com mistérios, alguma
ação, pois o gênero é filho direto da ação e aventura também, e inimigos
pavorosos e resistentes, mas acima de tudo, penso naquilo que vai fazer com que
o enfrentamento seja ainda mais difícil: escassez de itens médicos de cura do
personagem, protagonistas que sofrem muito dano e, acima de tudo, escassez de
munição para eliminar os inimigos principais, item básico para o enfrentamento
ser efetivo.
Junto
à escassez de munição está algo que acho que deve ser um elemento basilar para
o subgênero que é o gerenciamento minucioso dos itens do inventário, saber
planejar, justamente por conta da escassez, quando, como e onde utilizar
determinadas munições e itens, esse é um modelo de nível de dificuldade bem
específico que vai muito além do fazer sentir medo ou assustar. Acrescentaria
ainda ao subgênero um gosto frequente não apenas por inimigos resistentes, mas
também por puzzles desafiadores, que normalmente fazem parte da trama da
história, como ocorre em “Alone in the Dark”.

No
final, o que faz esse tipo de jogo ser chamado de “horror de sobrevivência” é
exatamente a frequente sensação que o jogador tem de que seu personagem pode
morrer a qualquer momento, pois você não tem a segurança de uma munição abundante,
pois além de o inimigo ser resistente, a quantidade de munição para enfrentá-lo
não é suficiente e as chances de você usar tudo o que você tem e ele continuar
vivo e atrás de você é grande. Pode acontecer de o personagem estar ferido e
você precisar tomar cuidado por horas para não morrer, pois não tem item de
cura e simplesmente não aparece nenhum por muito tempo.
A
sobrevivência ao horror é isso, é se sentir sempre ameaçado, psicologicamente
você sabe que se a ameaça aparecer você quase nunca terá o que é suficiente
para dar cabo dela, e muitas vezes o ideal é fugir, escapar, se esgueirar pelos
cantos, se esconder, se utilizar de furtividade quando for preciso e possível.
Isso é muito diferente de um game que te oferece muita munição para que você
passe pelas fases matando todos os inimigos. O jogador do survival horror sabe
que ele pode ter que passar por várias partes sem matar nenhum inimigo para economizar
munição para os mais desafiadores e que podem impedir o avanço pelo cenário. E
isso é quando ainda temos munição e outras opções de enfrentamento, pois a
situação ainda é muito mais tenebrosa em games como “Outlast” e “Alien:
Isolation”, que não temos como enfrentar diretamente os inimigos, podemos
apenas encontrar algum jeito de sobreviver escapando, se escondendo e saindo daquela
situação da forma mais rápida e segura possível.

Sendo
assim o que seria um jogo de terror/horror apenas? De modo geral, acho que
modernamente, um mesmo jogo pode ser de terror/horror ou de survival horror
simplesmente modificando a dificuldade no menu inicial. O próprio Resident
Evil, em suas edições modernas, tem as opções de dificuldade clássica, normal,
fácil, pesadelo e por aí vai. Quando vamos para uma dificuldade mais fácil
temos uma facilitação justamente naquilo que na versão “normal” ou “clássica” é
mais complicado: inventário mais amplo, munições à vontade e inimigos que podem
ser derrubados com poucos disparos. Quando jogamos nas versões mais facilitadas
temos um terror/horror apenas.

Tirando
a parte da dificuldade que pode ser alterada podemos ter jogos de terror/horror
que não são survival em sua concepção. “The Last of Us”, por exemplo, apesar de
ter momentos desafiadores, a meu ver, não se encaixaria com muita tranquilidade
como um survival, mas sim um terror/horror voltado para o drama. Isso vale para
“Layers of Fear”, “Vampyr”, “Alice: Madness Returns”, apenas para listar
alguns.
Mas
o que estou chamando aqui de terror/horror? Isso é algo que também precisa ser
esclarecido. Primeiramente, muito do que se entende hoje por terror/horror foi deturpado
pela indústria do cinema em sua necessidade de criar nichos de consumo e
simplificar os conceitos para agilizar a venda. É preciso entender que terror/horror
não é jumpscare. Não é porque um filme não te assustou e não te deu medo que
ele não será de terror. Da mesma forma, não é porque você não achou graça de
uma piada, de um filme, que ele deixa de ser comédia. Essas coisas possuem estruturas
para serem chamadas assim, e coisas que causam medo mudam de uma pessoa para
outra, de uma época para outra, assim como nem todo mundo acha graça das mesmas
piadas.
Apesar
de serem comumente relacionados como sinônimos, terror e horror correspondem a
sensações e construções estéticas distintas, ainda que constantemente usadas como
complementares. A primeira definição desses termos para seus usos na arte
narrativa foi feita por Ann Radcliffe, uma escritora muito importante para o
estabelecimento do romance como gênero de prestígio na Inglaterra, em “On the supernatural
in poetry”. O texto – que faria parte do prólogo de um romance ainda inédito da
autora, mas foi publicado separadamente pela “The Monthly Magazine” em 1826 – é
construído enquanto um diálogo entre dois companheiros de viagem, Mr. S. e Mr.
W. Em dado momento, este último comenta:
“Terror
e horror são tão opostos que o primeiro expande a alma, e desperta as
faculdades a um grau elevado de vida. O outro as contrai, congela e quase as
aniquila. Apreendo que nem Shakespeare nem Milton, por suas ficções, nem o Sr.
Burke, por seu raciocínio, consideraram, em qualquer parte, o horror positivo
como uma fonte do sublime, ainda que todos concordem que o terror é uma fonte
considerável. E onde estará a grande diferença entre horror e terror, senão na
incerteza e na obscuridade, que acompanham o segundo, no que diz respeito ao
mal temido?”

Através
das palavras de Radcliffe apreendemos que tanto o terror quanto o horror são
fontes para a expressão do medo na literatura, no entanto, cada uma delas estabelece
formas próprias para essa expressão. O terror é o medo que vem acompanhado por
uma incerteza, uma expectativa, por vezes muito incômoda, originada pelo
suspense. Temos indícios
de que algo muito ruim está na iminência de acontecer, algo que pode afetar a integridade
física e mental de alguém, mas não somos capazes de definir a fonte desse mal
ou, em alguns casos, não é possível identificarmos quando e como o evento irá
ocorrer. Há um véu entre o sabido e o desconhecido. Tal obscuridade cria uma
pressão psicológica nos indivíduos, que começam a conjecturar, ansiosamente,
possíveis respostas para a origem desse medo. Dessa forma, o terror é capaz de
instigar a mente e a imaginação na medida em que mantem uma atmosfera de
ambiguidades e angústias.
Em
contrapartida, o horror é o medo diante do que está explícito. Não há suspense ou
ambiguidades: o acontecimento ruim já foi desencadeado, o mal revelou-se e está
diante de nossos olhos. Nas palavras de Radcliffe, há uma espécie de choque
diante do medo provocado pelo horror. Ao contrário do terror, que estimularia
“faculdades mais nobres”, o horror as embota, posto que ele nos entrega não
apenas uma visão perturbadora, mas também as causas do mal.

A
partir disso, as narrativas, seja nos jogos, nos livros ou no cinema, possuem
alguns elementos estéticos, narrativos, temáticos e psicológicos próprios de cada linguagem para
atingir esses efeitos, e aí temos os monstros, os fantasmas, os assassinos, a
violência extrema e gráfica, etc...Nesse sentido, o survival horror é um
subgênero que, me parece, tem como propósito intensificar a experiência de medo
do jogador a partir da criação de dificuldades muito específicas que vão além
da experiência do medo pelo medo.
Todo lugar tem suas maçãs podres... mas o que realmente importa são as maçãs boas, mesmo quando poucas...
Entao meu querido... siga firme e forte que as maçãs boas sempre vão aparecer no seu cesto
abraço!
Da um quentinho no coração ler um post desse falando bem aqui da alva, a poucas horas atrás tava falando com uma amiga, sobre como a alvanista é um lugar legal, q as pessoas se respeitam, e seu post é a prova disso, salvo algumas exceções como vc mesmo disse.
Essa comunidade é muito bonita. Dá gosto estar aqui e ter um espaço de acolhimento tão legal. Tem um ou outro, mas o que se percebe é o respeito.