Desde quando pensei em criar uma persona aqui no Alvanista falando sobre vilões de RPG, uma figura sempre me vinha imediatamente à mente: Kefka Palazzo, o icônico antagonista de Final Fantasy VI, tanto que o próprio nome da página (tal como a foto e o fundo de perfil) remetem ao mesmo. Com o nome possivelmente baseado no escritor Franz Kafka, o espalhafatoso arlequim, apesar de sua grande fama dentre os jogadores de RPGs eletrônicos (ou mesmo dentre dos jogos de videogame no geral, com o mesmo sempre aparecendo em listas até hoje, mesmo 30 anos após sua aparição), volta e meia acaba sendo alvo de certas críticas, como dizendo que ele não tem reais motivos, que é mal por ser mal, que é só uma cópia descarada do Coringa do Batman e por aí vai e, como não existem muitos materiais offscreen detalhando mais sobre o personagem (ou mesmo outras mídias que detalham mais sobre o mesmo, como acontece com seu "irmão mais novo" de vilania da franquia, o Sephiroth) e as falas do jogo no geral são bem simples, essas constatações, que Kefka é só uma piada, parecem ter algum tipo de embasamento... Mas será mesmo?

Character design de Kefka, feito pelo mestre Yoshitaka Amano
A seguir veremos mais detalhes sobre Kefka e, tal como foi dito no primeiro post da persona, para esmiuçarmos mais os reais motivos e feitos do vilão, precisaremos usar e abusar de spoilers, portanto se você é uma pessoa sensível a informações pré adquiridas a respeito de uma obra de ficção, a ponto de perder o interesse pela mesma só por isso, esteja avisado.
Final Fantasy VI se passa em um mundo resultante de uma hecatombe mágica denominada "Guerra dos Magi", onde humanos e Espers (criaturas com poderes mágicos) se digladiaram, a ponto da humanidade, com o resultado desse conflito, regredir em séculos, obrigando os sobreviventes a usarem máquinas a vapor e coisas do gênero (resultando na famosa ambientação steampunk do jogo). Porém, um Império governado pelo tirano Gestahl, séculos após o acontecido, começou a pesquisar os Espers que ainda sobreviveram ao mundo humano, drenando seus poderes mágicos com o objetivo de dominar o mundo e, nesse inteirim, surge Kefka, originalmente como um dos oficiais imperiais, sendo o primeiro indivíduo a passar pela operação de "infusão de magia", que pretendia dar novamente aos humanos poder de controlar aquele poder divino há muito tempo perdido. E, como resultado, Kefka adquiriu poderes mágicos, mas isso afetou a sua mente, fazendo-o ver o mundo de uma forma diferente, tornando-o uma pessoa cruel e inescrupulosa, sendo este o estopim para suas reais motivações e objetivos durante toda a sua jornada.

Posteriormente, Yoshinori Kitase (o diretor de FFVI) disse que essa cena foi feita especialmente para que o público já tivesse uma boa noção do personagem, e o fizesse ter a impressão que o mesmo tinha alguns parafusos a menos, sendo que originalmente Kefka iria aparecer sozinho
Em sua primeira aparição efetiva durante o jogo (já que ele aparece de relance na cena de introdução e em um flashback da Terra), Kefka é retratado como um vilão menor caricato, que chega no castelo de Figaro (onde Locke, Edgar e Terra se encontram) juntamente com dois soldados, e no meio do caminho, enquanto toca seu tema característico (que também é um tanto cômico), pede para que ambos limpem suas botas.E, mesmo que depois, ele viesse a botar fogo no castelo inteiro (apenas por Edgar ter se recusado a cooperar, cedendo a localização da Terra), o mesmo ainda parecia ser apenas um alívio cômico, sem maior importância e relevância futura para a narrativa.
"Filho de um submarino" - Uma das falas modificadas por Ted Woosley, o gênio responsável pela adaptação de FFVI para o ocidente, passando um jogo com temas tão pesados facilmente pela censura da Nintendo - além de dar ainda mais carisma para Kefka em vários momentos
Porém a coisa muda na próxima aparição do Kefka, onde ele envenena um castelo inteiro, Doma (onde Cyan vê sua família inteira sendo morta perante seus olhos), mostrando que ele era alguém cruel e sem o menor pingo de escrúpulos e, aos poucos, começava a afetar a sua importância dentro da narrativa, com o personagem tendo um enorme desenvolvimento (chegando a superar até mesmo vários dos personagens principais). E, conforme a narrativa vai avançando, Kefka vai mostrando cada vez mais o seu lado sombrio, matando o General Leo (um dos poucos oficiais do Império que tinha honra) com requintes de crueldade , empurrando o próprio Imperador abismo abaixo e alterando o equilíbrio da magia em todo o planeta, causando um verdadeiro fim do mundo, mudando completamente o mapa e alterando a vida de todos os personagens para sempre - e mostrando finalmente o seu real propósito.

Gestahl, sendo empurrado por Kefka no abismo - uma cena que não apenas representa a ascensão final do arlequim como vilão principal do jogo como também pode ser visto como uma analogia aos vilões anteriores da série, todos "velhos inúteis" com objetivos fracos
E então o jogo chega na sua segunda metade, O Mundo da Ruína, onde Kefka controla toda a magia do mundo em suas mãos (e lembrando que magia em FFVI = Poder divino), levanta uma torre com o seu nome e se dirige para o topo da mesma, onde fica atirando raios poderosos (chamados de "Luz do Julgamento") esporadicamente nos últimos sobreviventes do planeta. Nesse inteirim, Celes desperta em uma Ilha Solitária e, após tentar suicídio pela morte de Cid, que havia cuidado dela (ou de conseguir salvá-lo, já que o jogo dá essa opção ao jogador), a loirinha sai mundo destruído afora, de modo a procurar seus amigos e impedir os planos do arlequim.

Porém, se Kefka tinha poder para aniquilar cidades inteiras com sua Luz do Julgamento (tal como um certo nível de onisciência, por conseguir ver quais pessoas irá atacar), por que ele deixou sobreviventes? Por que esperou Celes possivelmente juntar todos seus companheiros (com todos ainda estando vivos, aliás) e se dirigir até ele, para tentar impedir seus feitos? Se ele realmente é tão louco assim e só queria destruir geral, por que deixou as coisas avançarem dessa maneira? Seria apenas uma conveniência de roteiro, tal como tantas outras que vemos por aí? Na verdade não, pois isso tudo está relacionado com seu real objetivo: a destruição de valores humanos.
Kefka, em sua forma divina, com asas angelicais e demoníacas ao mesmo tempo
Espera... Um vilão de um RPGzinho pro público juvenil dos anos 90 e lá vai bordoadas pensava em destruir valores humanos? Você usou drogas? Bem, o propósito dessa persona é esse, esmiuçar os reais objetivos e feitos dos vilões, mas desde que todo o embasamento para tal esteja dentro dos respectivos jogos e, no caso do Kefka, ele próprio diz isso, através de frases curtas, mas com muito significado:
"Aceitem a morte. A destruição é o destino de todas as coisas!"
"Por que as pessoas insistem em criar coisas que inevitavelmente serão destruídas?"
"Por que vocês se apegam à vida, sabendo que um dia irão morrer? Sabendo que, um dia, tudo deixará de existir..."
"Vida, sonhos, esperança... De onde eles surgem? E para onde vão? São coisas tão insignificantes... Eu destruirei todas elas!"
Com apenas essas frases, somadas à todas as ações do Kefka durante todo o FF6 são mais o que suficientes para definir o personagem como um perfeito niilista. Niilismo é um termo que deriva do latim "nihil" (nada), e nada mais é do que uma posição filosófica que nega dogmas e conceitos políticos, sociais e morais, sustentando que a existência humana não tem qualquer significado nem propósito. Existem várias nuances e idiossincrasias dentro desse tema mas, de modo a nos mantermos no tema do artigo, me focarei nas definições que Nietzsche deu para ele, o classificando como dois tipos principais:
Niilismo passivo (ou niilismo incompleto) - que é quando um indivíduo tem aversão aos valores sociais e humanos, porém ele não age de forma a combater esses conceitos, e acaba se resignando, e acaba aceitando viver em meio à pessoas que acreditam naquilo que ele abomina. Um exemplo clássico de niilismo passivo dentro da cultura nerd/geek atual, é o Rick, de Rick & Morty onde ele vive questionando e reclamando desses valores pregados pela sua família, mas continua vivendo com ela.
Niilismo ativo (ou niilismo completo) - que é quando um indivíduo, tendo aversão aos valores morais, político e sociais, age de forma a mudar esses conceitos, renegando os valores metafísicos e redirecionando a sua força vital para a destruição da moral. O próprio Nietzsche se considerava um niilista ativo (devido a todo o seu legado, focado justamente em abdicar dos valores morais), e é aqui onde Kefka se encaixa pois, ao absorver toda a magia do mundo para si, ele toma uma forma divina (lembrando que Deus é o símbolo de toda a moral, então nada mais sugestivo do que se tornar um para destruí-la), ao invés de simplesmente sair causando o caos (como o Coringa do Batman fez ao conseguir poderes divinos na HQ "Imperador Coringa"), deforma completamente o globo e deixa os poucos sobreviventes se debatendo em meio a um mundo destruído, onde coisas como esperança, apreço à vida, sonhos e afins não teriam espaço, e ele enfim poderia alterar esses conceitos os quais ele tem repulsa e colocar no lugar coisas que, ao seu ver, realmente fariam a vida valer a pena, como morte e destruição.

E é aqui onde Final Fantasy VI novamente brilha, pois, após o Mundo da Ruína ser formado, todos os personagens se mantiveram em situações desesperadoras, onde seus conceitos morais seriam postos à prova. Setzer perdeu seu ímpeto, Edgar perdeu seu reino (e teve que se aliar a ladrões para conseguí-lo de volta), Sabin resolveu ajudar uma casa prestes a desabar (podendo morrer a qualquer instante), Cyan se isolou e passou a mentir para uma mulher através de cartas, Locke continuou na sua busca incessante por uma maneira de consertar seu passado, Strago e Relm abriram mão de sua liberdade, Gau regrediu ao Veldt, Mog perdeu todos seus amigos, Terra decidiu cuidar de uma vila repleta de crianças que estavam prestes a serem atacadas por uma criatura horrenda e Celes, após perder toda sua razão para viver e decidir tomar a atitude que vários dos outros sobreviventes que também estavam ali, naquela ilha solitária, tomaram: que foi a de tirar a própria vida, pulando de um penhasco.

Se não fosse o fato da Celes ganhar novas esperanças ao ver o pássaro com a bandana do seu amado e então decidir seguir viagem em busca de todos seus companheiros, todos teriam sucumbido à reforma de valores do Kefka, porém eles seguiram em frente e, ao confrontá-lo no alto de sua torre, o vilão os pergunta "E vocês acharam algo que lhes dão forças para continuarem vivendo nesse mundo agonizante?" e, após cada um responder os seus motivos (com todos os personagens respondendo conceitos os quais o próprio Kefka queria destruir) ele os chama de livro de auto-ajuda e diz que irá dar um fim a todos esses motivos idiotas que eles têm para viver. Portanto, a batalha final de FFVI não é apenas um embate do bem contra o mal, não é um conflito cujo objetivo é salvar o mundo pois, o mundo já está em ruínas, ele não pode mais ser salvo e mesmo a magia, que poderia ajudar na reconstrução do mesmo, seria varrida do mapa com a derrota de Kefka. Ela é um embate moral, de valores que regem à vida humana contra um vilão que pode destruir tudo aquilo! Kefka Pallazo é um vilão que está, como diria Nietzsche, Além do Bem e do mal, pois, o que ele visa, é muito mais do que uma simples atitude moralmente ruim pode alcançar!
Infelizmente, como valores morais são coisas abstratas e não palpáveis (além de todo o conceito de niilismo e tudo o mais), muitos acabam interpretando mal as ações do Kefka, e acabam pensando que ele só faz as coisas à esmo mesmo. E, isso somado à sua batalha final, que apesar de ter um tema incrível e uma construção perfeita, é extremamente fácil (com o mesmo só tendo 65k de HP, com o jogador, nessa altura podendo causar danos consecutivos de 9999 tranquilamente), pode fazer muita gente torcer o nariz para o cara, e dando preferência para vilões com mais background e motivações mais concretas (como territórios, vingança, reviver alguém, sugar a energia do planeta de canudinho e por aí vai), mesmo que os feitos destes não cheguem nem próximos aos de criar um monumento à não existência onde valores transcendentais seriam aniquilados.

Porém, Kekfa continua sendo um dos vilões mais memoráveis e bem feitos que já apareceram na história dos RPGs eletrônicos, conseguindo destruir todo o globo, colocar toda a party em situações aterradoras e, mesmo que no final de tudo ele não tenha conseguido realizar o seu desejo mais íntimo (que era o de alterar esses valores, e não apenas destruí-los), ele ainda deixou uma catástrofe irreparável, um mundo destruído sem magia, sem retribuidores, sem império onde, todos precisarão se apegar aos seus conceitos humanos de forma desesperadora para conseguirem sobreviver, o que os colocará em prova e provavelmente trará alterações absurdas na maneira em que muitos habitantes passarão a ver suas vidas, o que nos faz pensar que: será que Terra, Celes, Locke, Edgar, Sabin, Cyan, Setzer, Mog, Gau, Shadow, Relm, Strago, Umaro e Gogo realmente conseguiram vencer? Isso é algo que nunca saberemos, porém sempre nos lembraremos desse cômico, assustador e incrível vilão - e tudo que ele representa.
Linda!